Alguém ganhará ou perderemos todos?
Seja na versão coxinha seja na versão mortadela, há um fato sobre o processo que termina que precisa preocupar qualquer um que seja sério e honesto neste país. Desde a redemocratização, elegemos quatro presidentes da República: Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Desses quatro, depusemos dois deles num processo de impeachment antes do final dos seus mandatos: Collor e - todos nós já sabemos qual será o resultado final - Dilma.
Não pode ser considerado normal um processo político que depõe a metade dos seus presidentes eleitos. Seja qual for a versão verdadeira dos dias que vivemos, ceifar o mandato de um de cada dois presidentes é escabroso. A não ser que resolvamos incorporar mais essa jabuticaba na vida brasileira: a institucionalização da crise política como situação rotineira.
Se a versão coxinha é a correta, então temos um sistema a partir do qual os governantes inclinam-se a cometer crimes graves no exercício dos seus mandatos. Se é assim, a cada quatro anos os brasileiros reúnem-se para eleger uma quadrilha que vai dilapidar o seu patrimônio. Seja por uma falha profunda no nosso sistema que impede ao governante agir dessa forma seja por uma falha de caráter da nossa elite política que precisa ser tratada deitando esse nosso gigante num divã em vez de um berço esplêndido. Na melhor das hipóteses - dada a relação de um de cada dois eleitos -, afundararemos uma vez e respiraremos um pouco na outra.
Se a versão mortadela é a correta, há uma falha no nosso arcabouço institucional que permite destronar governantes pela via indireta dos plenários do Congresso apenas por falta de sustentação política. Aí, seria o cúmulo da jabuticaba: em vez da possibilidade estável da deposição, como acontece no regime parlamentarista, teríamos parte da classe política trabalhando arduamente para manter o país em crise - paralisando o Congresso, paralisando a economia - como forma de tornar insustentável a manutenção do governante para derrubá-lo por impeachment.
Independentemente da versão que prevaleça, se coxinhas e mortadelas não compreenderem que, seja por que razão, não há salvação em um modelo que ceifa a cabeça de metade de seus governantes eleitos, ninguém sairá ganhando desse processo. Nós, brasileiros, perderemos todos.
Numa situação normal, a primeira tarefa à qual o país deveria se debruçar terminado esse processo seria procurar entender quais são as falhas do nosso sistema para corrigí-las. Não poderá se tratar de um pacto para livrar todos os demais além de Dilma da condenação. Pelo contrário, o ideal é a manutenção do processo de depuração que acontece e a discussão sobre como ultrapassar os pontos que nos trouxeram a isso. Que se resumem á forma como se financia a política no Brasil, e à relação entre os financiadores e seus financiados.
Nosso maior problema é que tais questões infelizmente não parecem estar no radar da maioria da nossa classe política, que continua fazendo cálculos eleitorais menores, imaginando que é possível empurrar isso tudo com a barriga, tirando pequenos proveitos dessa situação de crise crônica.
Foram os cálculos políticos menores que levaram o PT a desautorizar a negociação que a presidente afastada Dilma Rousseff pretendia tentar de convocação de novas eleições. Já contamos aqui que a bancada petista inclinava-se a apoiar tais tratativas. Mas queria um aval da direção do partido, que não veio. Pelo contrário, foi totalmente rechaçado pelo presidente do PT, Rui Falcão. Há um bastidor de uma reunião no Palácio da Alvorada há algumas semanas que mostra o grau da divisão entre Dilma e Falcão. Chamado para discutir estratégias com um grupo de aliados, em determinado momento Falcão teria dito: "Já não tem mais jeito". Foi fulminado por um olhar de Dilma, com sua habitual falta de diplomacia: "Quem disse a você que não tem mais jeito?"
Para o PT, o "jeito" já passava longe do retorno de Dilma e da possibilidade de uma eleição antecipada na qual o partido ainda participaria gravemente ferido pela crise, sem ter certeza das suas chances, mesmo tendo Lula como candidato. Melhor seria construir com Dilma a narrativa do golpe, apostar num fracasso do governo Temer e retornar daqui a dois anos quando a memória dos episódios de hoje estiver arrefecida. No Nordeste, onde Lula e Dilma sempre tiveram mais votos em razão das políticas petistas de ascensão social, a narrativa do golpe é muito mais bem vista que no Sul e no Sudeste.
Mas também são os cálculos políticos menores que podem vir a atrapalhar o presidente em exercício Michel Temer na sua futura relação com seus aliados, concluído o processo de impeachment. Não mais pelo PT, mas por algumas forças políticas que apoiaram a deposição de Dilma, ainda há risco de interrupção do mandato de Temer antes do fim. Há quem discuta a antecipação das eleições para fevereiro, trabalhando a condenação da chapa Temer/Dilma pelo Tribunal Superior Eleitoral. Para alguns grupos, é melhor apostar no prosseguimento da crise do que dar a Temer alguma chance de dar certo.
Há aqueles grupos que pensam sobressair em um processo no qual a sociedade rejeite tanto o grupo de Temer e o PSDB - pelas denúncias que também atingem os dois partidos - quanto o PT. Vão aí desde Jair Bolsonaro a Ciro Gomes, passando por Alvaro Dias e Cristovam Buarque. E, num diapasão menor, o Centrão - novo nome do baixo clero que ascendeu durante o período em que Eduardo Cunha (PMDB-RJ) presidiu a Câmara - tramando dificuldades na aprovação de temas de interesse do governo como forma de retomar o antigo poder que tinha.
Enfim, a opção que nossa classe política parece tomar quase sempre pela política pequena pode consolidar mesmo a tal crise crônica como sistema político brasileiro. Derrubando um a cada dois presidentes da República. É isso o que desejamos?