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Na seção Recreio, Goiás, uma cidade em algum lugar do passado


Todos os dias pela manhã, a visita de um papagaio verde, com a parte interna das asas vermelha. Dava um rasante pela varanda e, com seu gingado de Carlito, caminhava pela madeira do teto até se esconder no telhado do chalé, onde fizera seu ninho. A fazer companhia ao papagaio, a bem vinda presença ruidosa de bem-te-vis, araras, periquitos e outros pássaros. Borboletas. Outros insetos no exagero de árvores frutíferas. O gorgolejar do rio próximo no seu caminho pelas pedras. O barulho do sossego...

O “barulho do sossego” resume a cidade de Goiás. Aquela que, para ódio dos locais, alguns chamam de Goiás Velho. A cidade de Goiás não é velha. É só Goiás. Ou Vila Boa de Goiás, seu primeiro nome. Não é velha. É antiga. Até porque não envelheceu. Mas se congelou em algum lugar do passado. E é isso o que a torna tão especial. Ao contrário de Pirenópolis, o point mais próximo de Brasília, Goiás não se gourmetizou. Não trocou a experiência única da gastronomia goiana pela falsa invasão da sofisticação estrangeira, que, infelizmente, hoje faz de Pirenópolis um destino caro para o que antes era tão acessível de tão perto.

Goiás conserva características únicas de um outro tempo. E isso a torna tão especial. Onde mais os alfenins de Dona Silvia Curado, uma das únicas no país a seguir a tradição herdada de Portugal e dos seus tempos de influência árabe, das delicadas esculturas de açúcar? Onde mais os deliciosos pastelinhos de doce de leite? O docinho de limão recheado também com doce de leite? Onde ainda bandinhas no coreto?

Tombada desde 2001 pela Unesco como Patrimônio Histórico e Cultural Mundial, a cidade de Goiás é bem mais bonita e interessante do ponto de vista arquitetônico que a mais badalada Pirenópolis. É uma cidade maior e que foi bem mais importante. Até a fundação de Goiânia, era a capital de Goiás. E foi por muitos anos uma das principais cidades da região Centro-Oeste, ponto principal do esforço expansionista dos bandeirantes rumo ao interior em busca de ouro e pedras preciosas.

Depois da descoberta do ouro em Minas Gerais e no Mato Grosso no século 17, seguia-se uma crença, vinda ainda do Renascimento, de que os filões de ouro espalhavam-se pelo mundo em linhas paralelas ao Equador. Foi seguindo essa ideia que as expedições bandeirantes entraram país adentro. Foi assim que Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera, foi parar, em 1727, no que hoje é a cidade de Goiás. Ali, ele fundou inicialmente o Arraial de Sant’Anna, que virou depois Villa Boa de Goiaz. Em 1748, foi criada a Comarca de Goiás, que teria como governador Marcos de Noronha, o Conde dos Arcos.

Os traços dessa história encontram-se incólumes na cidade de Goiás. A cruz de madeira que teria sido fincada pelo Anhanguera ao fundar a cidade está hoje no Museu das Bandeiras, no prédio que foi a antiga cadeia e Câmara Municipal. Originalmente, ela ficava em um monumento na entrada da cidade, em frente à casa da poetisa Cora Coralina. Até ser levada por uma enchente do Rio Vermelho que devastou a cidade em 2011. Reencontrada a antiga cruz, foi colocada no monumento uma réplica, e a cruz original foi para o museu.

O palácio erguido pelo Conde dos Arcos no século 18 também abriga um museu, e uma vez por ano, no aniversário da cidade, 25 de julho, volta a ser sede do governo e é dali que despacha o governador de Goiás.

A mistura de história, arquitetura, natureza e vida interiorana tornam a cidade de Goiás cativante. É uma ótima pedida para um feriado prolongado. Como fica a mais de 300 quilômetros de Brasília, é proibitiva para só um fim de semana, como Pirenópolis. Com um pouco mais de calma, é preciso acrescentar outras ótimas paradas pelo caminho.

Indo pela BR-060, que liga Brasília a Goiânia, vai-se até Anápolis. Até lá, garantia de boa estrada, duplicada, sem problemas. Há um pedágio no caminho. O valor para automóvel de passeio é de cerca de R$ 5. Depois de Anápolis, a coisa complica um pouco. Recomenda-se o uso de GPS, porque não há muitas indicações pelo caminho. Passando-se por dentro da cidade, segue-se para a GO-222, que liga Anápolis a Nerópolis. Em Nerópolis, passa-se novamente por dentro da cidade e pega-se outra vez a estrada para Nova Veneza. Cuidado com esse trecho, que está em petição de miséria. Alguns dos buracos devem ser maiores que as crateras da Lua. De Nova Veneza, vai-se para Inhumas. E dali, pela GO-070, a estrada é novamente boa e duplicada até Goiás Velho.

Pelo caminho, quem quiser pode parar no Outlet Premium, em Alexânia, para umas comprinhas. Atenção: nem tudo é mais barato mesmo. Mas com certa garimpagem, encontram-se boas pedidas de roupas boas, de boas marcas. Ao lado do Outlet, duas ótimas dicas para almoço são o Castelo 21, um excelente restaurante árabe a quilo, com uma das melhores kaftas do planeta. E o Alambique Cambeba, que já foi tema de uma seção Recreio por aqui.

Em Goiás Velho, a Pousada do Ipê foi uma boa opção de estadia. Com diárias a preço justo, os chalés são amplos e confortáveis. Num canto da cidade próximo ao rio, é de um sossego absoluto, embora dali seja possível conhecer a cidade inteira a pé. Tem um excelente café da manhã. Atenção: é preciso todos os dias pedir para arrumar o quarto, senão não arrumam. Não espere um grande serviço. Em uma semana, por exemplo, o bar da piscina não abriu uma vez sequer.

Há boas opções gastronômicas pela cidade. O restaurante Dali tem umas panelinhas de comer rezando: arroz com carne de sol e linguiça e uma generosa quantidade queijo cobrindo tudo. Na pizzaria Ouro Fino, as pizzas são excelentes. Ao lado, o café Dedo de Prosa também tem ótimas opções de comidinhas. No belo mercado da cidade, prove o bolinho de arroz. Prove! Não deixe de provar! E a todo canto as diversas velhinhas doceiras e os doces que só por ali se encontram.

Doces que foram o sustento de Cora Coralina. E somente o encontro com a história da grande poetisa goiana já valem a ida a Goiás. Cora nasceu na cidade, na sua “casa velha da ponte”, às margens do Rio Vermelho. Depois que se casou, mudou-se com o marido para São Paulo, onde teve seus filhos. Depois que ficou viúva, com seus filhos criados, voltou para Goiás e foi fazer doces. Seu primeiro livro de poesias, publicou somente aos 70 anos. É dona de palavras que parecem brotar da terra como as flores de seu jardim. Ou fluir como a água da bica no porão da sua casa. Hoje, a casa de Cora abriga uma exposição interativa permanente que foi montada originalmente para o Museu da Língua Portuguesa em São Paulo. Os versos de Cora projetam-se saídos como fumaça de seu fogão ou de sua velha máquina de escrever ou da água que corre da bica. Cora emociona. Goiás emociona. Nos leva de volta no tempo. Para algum lugar do passado. Para algum tempo de um Brasil que resiste.


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