Recreio no Fim do Mundo: El Calafate e Ushuaia
Voltamos à seção Recreio, onde amenizamos os comentários sobre política com experiências de viagens e passeios. Desta vez, o Recreio será no fin del mundo, como os argentinos chamam a Terra do Fogo, a região mais austral do continente americano, antes da Antártida, o lugar mais ao sul onde se é possível ir por terra.
É curioso que um dos lugares mais frios habitados do planeta tenha recebido o nome de Terra do Fogo. E ele se deve a Fernão de Magalhães, o navegador português que fez a primeira viagem de volta ao mundo, entre 1519 e 1521. Quando ele passou pela ilha cujo território hoje é dividido entre argentinos e chilenos, avistou da sua embarcação pequenas fogueiras, que indicavam a presença ali de populações humanas. Por conta dessas fogueiras, batizou o local de Terra do Fogo.
Se o nome parece inusitado, mais inusitados eram os habitantes que Fernão de Magalhães encontrou por ali. Os índios Yamana viviam ali naquela região completamente nus, como se pode ver na foto acima, da Wikipedia! Conseguiam isso graças a características muito especiais da sua rotina e da sua dieta. Alimentavam-se quase que somente das partes mais gordurosas de animais como focas e leões marinhos. E não tomavam banho. Assim, conseguiam formar uma espécie de camada de gordura que os protegia. Quando os primeiros brancos ali chegaram com suas ideias de civilização, forçaram mudanças de hábito aos índios. Eles deveriam incluir vegetais e outros alimentos à sua alimentação. E deveriam usar roupas. O resultado é que, a partir daí, os índios começaram a adoecer e foram praticamente extintos. Segundo o verbete da Wikipedia, em 1995 só havia 74 remanescentes dos yamana. Em 2002, o númerou subiu para pouco mais de mil, mas só havia uma única mulher, uma anciã chamada Cristina Calderón, capaz de falar a língua original desses índios, cujos hábitos deram nome ao lugar. Mais uma história da arrogância e da violência das culturas que, de forma ignorante, querem se impor sobre as culturas ancestrais.
Além das suas características inusitadas, o Fin del Mundo é uma das regiões mais bonitas do planeta. Com uma variedade impressionante de pássaros e outros animais que não se encontram em outras regiões. Com uma vegetação que às vezes pode parecer bruta para aguentar o tempo frio, mas que em outras ocasiões revela-se belíssima, na sua mistura de cores entre o vermelho vivo e o branco da neve, passando pelo verde.
De Buenos Aires, há voos regulares para os dois principais destinos da Terra do Fogo: El Calafate, onde fica o Glaciar Perito Moreno, e Ushuaia, a cidade mais austral do mundo. Essa nossa viagem começa por El Calafate. Aqui, de novo, o nome nos remete a Magalhães e os grandes navegadores do século XVI. O calafate é uma doce e deliciosa frutinha azul que só existe na região. Diz a lenda que quem come calafate retorna à Terra do Fogo. Eu já estive ali duas vezes. Mas da sua planta também sai uma resina que os antigos navegadores usavam para reparar seus navios quando passavam pela região. Para "calafetá-los", daí o nome de calafate.
A pequena cidade, próxima à fronteira do Chile, é um encanto cravado em uma região inóspita, de vegetação quase marrom e rasteira. São apenas 21.132 habitantes que ali vivem ao lago de alguns dos principais lagos da região, como o Lago Argentino. Nas águas desses lagos e mares formam-se um dos mais lindos e grandiosos espetáculos da natureza, os glaciares. São imensas formações milenares de neve compactada. Um deles é a principal atração da região. O glaciar Perito Moreno é o maior glaciar que pode ser visitado por terra. É possível chegar à frente dele por uma boa estrada de asfalto. E a visão é impressionante. Uma área gelada maior que a cidade de Buenos Aires se perde no horizonte. E forma um paredão de mais de 30 metros sobre as águas. Tons que vão do branco, passando pelo azul claro e escuro até o preto total se distinguem no paredão. Eles correspondem à quantidade de ar nos sulcos da parede de gelo. Quanto menos ar, mais escuro. De quando em quando, ouvem-se grandes explosões. São os blocos que caem do paredão nas águas. O trabalho do gelo caindo e se formando é constante. Apesar do aquecimento global, o Perito Moreno, por um milagre da natureza, tem se mantido estável.
A natureza de El Calafate reserva ainda outros passeios inesquecíveis. Dentro da cidade, há uma reserva natural em volta da Laguna Nimez. Uma quantidade impressionante de pássaros, como os flamingos rosa, habitam a reserva, que podem ser vistos numa trilha de três quilômetros e meios que circunda a lagoa.
A pequena cidade tem ainda boas opções de compras de artesanato e excelente culinária. Onde se destaca o cordeiro patagônico. Feito com as mesmas técnicas de fogo de chão da tradicional parrilla argentina, o cordeiro patagônico é delicioso. Outra atração da cidade é o luxuoso Hotel Alto Calafate, que pertence à ex-presidente argentina Cristina Kirchner.
Seguindo a viagem, vamos para Ushuaia, a cidade mais ao sul do mundo. A Ruta Nacional número 3, que termina no Parque Nacional Tierra del Fuego, é o último ponto que se pode chegar por terra no continente americano ao sul. Ao final do parque nacional, a há a Bahia Lapataia. Do outro lado, é a Antártida.
Durante muitos anos, a isoladíssima Ushuaia abrigava um dos mais crueis presídios do mundo. Para ali, os argentinos levavam seus criminosos mais perigosos e presos políticos. Isolados, era quase impossível que conseguissem fugir dali. Uma das atividades desses presos era cortar madeira onde hoje fica o parque nacional. Uma estrada de ferro os conduzia até ali. Hoje, parte dessa estrada de ferro leva turistas até o parque nacional.
Mas Ushuaia permite ainda a observação de alguns dos animais que vivem as regiões geladas do planeta. Um passeio de barco pelo Canal de Beagle leva a ilhas onde é possível se observar leões e lobos marinhos e os incríveis pinguins. Os mais comuns na região são os Magallanicos, assim batizados novamente em homenagem ao navegador português, e os Papua. Menores, os pinguins Magallanicos são preto e branco. Os pinguins Papua têm bico e patas alaranjadas e são um pouco maiores. Ainda há muito pela região um pássaro que se confunde com os pinguins. São os cormorões. Mas, ao contrário dos pinguins, os cormorões voam. E costumam habitar os mesmos espaços de lobos e leões marinhos.
Além do cordeiro patagônico, Ushuaia tem uma culinária rica em frutos do mar, onde se destaca a Centolla, um imenso e delicioso crustáceo vermelho.
Em El Calafate e Ushuaia, faz frio em qualquer época do ano, com fortes ventos cortantes. É preciso levar casacos e roupas de frio pesado, como gorros, máscaras e luvas. Pela proximidade com o polo, será possível observar-se dias ou noites longuíssimas. No verão, a temperatura será mais amena, ficando durante o dia em torno de dez graus. Um dia que só vai acabar por volta das 23 horas! Será muito possível que você nunca veja ficar escuro. Porque por volta das quatro da manhã já estará claro de novo. No inverno, ao contrário, só haverá em torno de três horas de dia. Portanto, evite essa época. Não há luz, é muito frio, e isso inviabiliza uma série de passeios. Minha última viagem foi feita em abril, quando o outono aumenta as cores da natureza com tons de vermelho. O frio, porém, é maior.