Quem vigia os vigilantes?
Watchmen, de Alan Moore e David Gibbons, é um dos grandes clássicos das histórias em quadrinhos. A história busca dar uma perspectiva realista à hipótese da existência de super-heróis. Diante mais ou menos da seguinte premissa: entre os superpoderes de um ser humano não necessariamente viria um supercaráter. Então, entre esses vigilantes superpoderosos que sairiam por aí fazendo “justiça” poderia haver gente inescrupulosa, superviolenta, fascista, racista, machista, etc. O que nos levaria ao questionamento que, na história em quadrinhos, é constantemente pichado nos muros da cidade: “Quem vigia os vigilantes?” (no original: "Who Watches the Watchmen?"). Quem pode conter os excessos de seres tão poderosos? O recente filme Guerra Civil, com os personagens da Marvel, tem premissa semelhante.
A lembrança vem à mente quando se avalia o protagonismo que vem tomando nos últimos tempos o braço da Justiça na República brasileira. Por uma série de razões – mas que decorrem principalmente do enfraquecimento do Legislativo e do Executivo pelas seguidas denúncias de corrupção –, o Judiciário brasileiro vem ganhando um peso maior como poder. Seja pelas ações que unem juízes, Ministério Público e polícia como na Operação Lava-Jato, seja pelo próprio papel que principalmente o Supremo Tribunal Federal (STF) ganhou na resolução de temas nos quais os demais poderes se omitiram, virando instância para a solução de contenciosos políticos ou mesmo para “legislar” em casos omissos, como a união estável entre homossexuais.
Uma entrevista publicada na semana passada na edição brasileira de El País aborda muito bem essa situação. O entrevistado é o cientista político Rogério Arantes, da Universidade de São Paulo (USP), que se especializou em estudar o sistema judiciário brasileiro e as atuações do Ministério Público e da Polícia Federal. Na entrevista, Rogério Arantes aponta para os riscos que pode haver nas boas intenções das investigações que visam coibir a corrupção no país se os atores dessas investigações começam a extrapolar de seus poderes, deslumbrados pelos holofotes, dando um caráter de espetacularização às suas ações. Ou, mais perigoso ainda, se eventualmente deixarem que suas ações resvalem para o campo da luta política.
Nos últimos dias, tivemos, nesse campo, alguns momentos que levaram a diversos questionamentos nesse sentido. A entrevista coletiva conduzida pelo procurador Deltan Dalagnol, apontando o ex-presidente Lula como “comandante máximo” do esquema de corrupção descoberto na Petrobras. A prisão do ex-ministro da Fazenda Guido Mantega no hospital onde acompanhava uma cirurgia de sua esposa, que está com câncer – desfeita mais tarde pelo juiz Sergio Moro. As palavras do ministro da Justiça, Alexandre Moraes, num ato político com integrantes do Movimento Brasil Livre (MBL), adiantando que haveria novas ações da Polícia Federal, que realmente aconteceram na segunda-feira (26) com a prisão do ex-ministro Antonio Palocci.
Já mostramos por aqui como a Operação Lava-Jato é a Operação Mãos Limpas que o juiz Sergio Moro sempre sonhou ter para chamar de sua. E é aí que Rogério Arantes faz uma de suas advertências na entrevista a El País: “Numa Operação Mãos Limpas, quem a conduz não pode sujar as suas próprias mãos, sob o risco de perder apoio institucional e da opinião pública”.
Rogério Arantes observa que, mesmo no caso do que foi dito por Dalagnol na entrevista, há o esforço em decalcar a Lava-Jato às Mãos Limpas italiana. Lá, cunhou-se a expressão Targentopoli (cidade do suborno) para definir o esquema de corrupção italiano. Aqui, Dalagnol usou a ideia da Propinocracia para definir o que, na sua avaliação, acontecia no governo. “A denúncia foi extravagante e será difícil sustentá-la em meio ao devido processo legal. Não há uma instância na qual a “propinocracia” possa ser julgada, não sem altas doses de arbitrariedade e até de injustiça”, considera, na entrevista, Rogério Arantes.
Segundo Arantes, desde 1988, a Justiça vem ganhando todos os embates que teve com a política. Fortaleceu-se, assim, beneficiando-se de um sistema fragmentado, que se mostrou incapaz de reagir aos avanços impostos pelo Judiciário – e mesmo pela sociedade civil, o comentário aqui é meu e se refere a coisas como a Lei da Ficha Limpa – no combate à corrupção. Arantes cita como exemplo o recente fracasso do Congresso em tentar anistiar o caixa dois. “Essa peleja entre Justiça e Política está inscrita no nosso desenho institucional e deve ser encarada como um campeonato permanente e não apenas como uma partida isolada”, anota o cientista político.
O problema do protagonismo excessivo do Judiciário é quando ele compromete a necessidade de equilíbrio entre os Poderes, que é um dos pilares dos sistemas democráticos. Na verdade, vem lá dos primórdios dessa discussão, dos tempos do Iluminismo na França, quando Montesquieu lançou a Teoria dos Três Poderes no seu O Espírito das Leis. É a ideia da necessidade de um “sistema de freios e contrapesos”, no qual cada um dos Poderes fiscaliza e limita os excessos dos outros.
No nosso caso, o Judiciário vem impondo pesado seus freios e contrapesos sobre o Executivo e o Legislativo. Mas quem questiona o Judiciário se eles agirem com excesso – ou, pior, porque é composto por seres humanos, se agirem com má fé? Enfim, como diziam Alan Morre e David Gibbons em Whatchmen, “quem vigia os vigilantes?”