Irresponsabilidade foi o nome do jogo que culminou no impeachment
Os dramáticos - bem ao seu estilo - apelos da advogada Janaína Paschoal nas redes sociais para que ninguém entrasse com ações no Supremo Tribunal Federal pedindo a revisão da votação do processo de impeachment de Dilma Rousseff ilustram bem o tamanho da confusão criada. Na visão de Janaína, se o processo for revisto, pode implicar a realização de uma nova sessão de julgamento no Senado. Como já se passaram 180 dias da votação inicial na Câmara e da decisão de afastá-la da Presidência para que ela fosse julgada, Dilma, no entender de Janaína, voltaria agora a ocupar o gabinete do terceiro andar do Palácio do Planalto, defenestrando Michel Temer.
Os apelos de Janaína não fizeram muito eco. Mas se a advogada estiver certa, a melô desse confuso processo seria aquela antiga musiquinha: "Ocê pensa que nós fumo embora?/Nós enganemo ocês/Nós fez que ia e num fumo/Ói nós aqui travez"...
O fato é que o Supremo tem nas mãos um enrosco imenso. E, pelas manifestações de boa parte dos ministros, a Corte parece avaliar que, de fato, os senadores fizeram uma interpretação muito "pessoal", para dizer o mínimo, do artigo 52 da Constituição que, em seu parágrafo único, estabelece que a pena no processo de impeachment é "perda do mandato com inabilitação, por oito anos, para o exercício da função pública". Quando condenaram Dilma com a perda do mandato "sem" a inabilitação, os senadores fizeram, ao que parece, uma leitura meio torta da Constituição, enxergando ali uma possibilidade de dosimetria da pena um bocado controversa.
A batata quente fica agora para o Supremo. Que fica na seguinte situação: rever a decisão implica rever a decisão toda? E, aí, precisaria haver novo julgamento? Não rever é abrir brecha para que essa mesma dosimetria seja aplicada em outros casos de afastamento de governantes e cassação de mandato? O que já é certo nisso tudo: a surpreendente decisão do Senado manteve o país sob suspense. Manteve alta a chama da crise política.
E esse é o grande problema desse processo todo: desde o início, as atitudes tomadas pelas autoridades brasileiras nos capítulos que culminaram no impeachment de Dilma pareceram ter como único propósito manter alta a chama da crise. Irresponsabilidade é a palavra que parece resumir tudo.
Começa pela postura de Dilma na campanha da sua reeleição. Quando optou por ignorar os sinais da crise econômica, mantendo um discurso de prosperidade e manutenção da justiça social que provavelmente não teria mais condições de sustentar. Tão logo assumiu, com Joaquim Levy no comando da economia, procurou imprimir os remédios da recessão que negou na campanha. Os resultados: sua popularidade despencou e o Congresso nunca demonstrou a disposição esperada por ela para corroborar agora o que ela própria negara na véspera.
Naquela que talvez seja a melhor reportagem dos últimos anos, a jornalista Leandra Péres, do Valor Econômico, mostrou com imensa riqueza de detalhes como foram ignorados os alertas dados pelos técnicos do Tesouro Nacional de que as chamadas pedaladas fiscais precisavam ser imediatamente interrompidas. No devido economês, mas ainda com considerável clareza, os técnicos recomendavam "interromper imediatamente quaisquer operações que produzam resultado primário sem a contrapartida de contratação da demanda agregada ou que gere efeitos negativos sobre o resultado nominal e/ou taxa implícita da dívida líquida". Para quem não conhecia: prazer, essas são as pedaladas. O descrédito quanto à política fiscal brasileira levou ao rebaixamento das notas de risco pelas agências internacionais, as pedaladas foram reprovadas pelo Tribunal de Contas da União, e o resto é história.
Se esse foi o quadro no campo da economia, no campo da política o grau de gravidade desses atos do governo acabou sempre sendo também relativizado pelas atitudes igualmente nada sérias dos atores principais. Durante meses, o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), segurou nas suas mãos os pedidos de impeachment, com o intuito claro de tentar barganhar com eles a sua própria situação. Assim, Cunha conseguiu fazer com que a tramitação do seu processo de cassação fosse a mais longa da história. Quando sentiu que não teria do governo Dilma o apoio que negociava para reverter o seu processo, Cunha admitiu o impeachment. Ou seja: independentemente de ter havido ou não o crime de responsabilidade de Dilma, a razão para o início do processo ficou mais com cara de revanche.
As cenas dos deputados votando "pela glória de Deus", "pela memória da minha mãe" e por outras razões que passavam a milhares de quilômetros do ponto central da discussão resumem a sessão da Câmara que admitiu o processo de impeachment na sua primeira etapa. Não há muito mais o que seja preciso dizer sobre aquele dia de constrangimento.
Em um momento das etapas iniciais do julgamento no Senado, o advogado de Dilma, José Eduardo Cardozo, ao mencionar nomes de juristas que fizeram pareceres favoráveis à agora ex-presidente, chamou o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Thomás da Rosa Bustamante de "Thomás Turbando". Segundo Cardozo, algum funcionário do escritório pegou uma relação "de brincadeira" que havia e pensou que era séria. E ele leu assim no plenário. Assim, no meio do julgmaento que culiminou no afastamento da presidente eleita, o país ficou sabendo que os advogados brincam com o nome de Bustamante chamando-o de "Thomás Turbando". Há-há-há-há...
Enfim, chegamos à sessão final. Aquela na qual a senadora Kátia Abreu (PMDB-GO) justifica o fatiamento da punição do impeachment com o argumento de que Dilma, caso se aposentasse, teria uma pensão de apenas R$ 5 mil. Por isso, os senadores deveriam reservar a ela a possibilidade de continuar exercendo funções públicas. Na qual o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), brande a Constituição - que parece dizer justamente o contrário - para pedir aos senadores que não fossem cruéis com Dilma. Os senadores fatiam a punição e, como resultado, o STF já recebeu seis ações pedindo a revisão da decisão, apesar dos clamores de Janaína Paschoal.
Vale ainda no relato da irresponsabilidade a decisão do Senado,apenas dois dias depois, de aumentar os limites para que o governo abra créditos suplementares sem autorização do Congresso. Editar decretos de suplementação orçamentária sem a autorização do Congresso foi uma das razões do impeachment de Dilma...
O mínimo que se pode esperar agora é que o Supremo, na decisão das ações que recebeu, não siga nessa balada de irresponsabilidade. O pais não merece...