Ecos de um Judiciário superpoderoso
A gente já comentou aqui algumas vezes sobre a tese que o juiz Sérgio Moro escreveu há doze anos sobre a Operação Mãos Limpas da Itália. Essa tese é um verdadeiro manual para entender o Brasil atual. Uma das coisas ditas por Sérgio Moro nesse texto é a oportunidade que ele entende haver em um momento em que os dois poderes essencialmente políticos - Executivo e Legislativo - encontram-se enfraquecidos e o Judiciário fortalecido: é a chance de o Judiciário tomar as rédeas e fazer o necessário saneamento das instituições. "A independência judiciária, interna e externa, a progressiva deslegitimação de um sistema político corrupto e a maior legitimação da magistratura em relação aos políticos profissionais foram, portanto, as condições que tornaram possível o círculo virtuoso gerado pela operação mani pulite", escreveu Sergio Moro, na ocasião (o juiz sempre se refere à Mãos Limpas pelo seu nome original, em italiano).
Por aqui, situação semelhante se percebe há algum tempo. A chamada judicialização da política começou a ser notada nos momentos em que o Supremo Tribunal Federal apareceu para corrigir omissões do Legislativo - como nos casos do nascimento de fetos anencéfalos ou na união entre pessoas do mesmo sexo. E, do mensalão para cá, para claramente punir a classe política pelos seus maus hábitos. Por mais que a própria classe política possa reagir a isso.
O caso recente do afastamento de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) da presidência da Câmara e das suas atividades de deputado é um forte exemplo disso. O ministro do STF, Teori Zavascki, ficou no limite da interferência de um poder sobre o outro. Mas assim agiu por entender que ficava clara a utilização por Cunha de seus poderes para interferir no andamento de investigações e processos contra ele. Ninguém deverá se surpreender se o STF agir de forma semelhante outra vez, caso a Câmara venha a ignorar eventuais evidências contra Cunha para livrá-lo da cassação. Se o STF entender pela existência de vícios nesse processo, e entender que tem elementos constitucionais para interferir, provavelmente o fará.
O problema da existência desse Judiciário superpoderoso, pairando sobre os demais poderes, é que tal processo acaba levando a política de vez para dentro dos ambientes suntuosos onde a toga se sobrepõe ao paletó e a gravata. Bobagem imaginar que os juízes não tenham suas posições políticas. Embora devessem deixá-las distantes dos tribunais, da mesma forma como os jornalistas políticos deveriam fazer com os seus textos. Mas, quando começa a caber aos juízes fazer política, pedir tal distanciamento vai ficando impossível.
O recente bate-boca entre o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, e o ministro Gilmar Mendes é evidência disso. Cada lado da imensa torcida brasileira começou a desconfiar das atitudes de ambos. O que queria Janot quando pediu as prisões do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), do ex-presidente José Sarney e do senador Romero Jucá? Teria ele agido para desviar o foco ou criar dificuldades para a manutenção do impeachment? Ou teria informações suficientes para sustentar o pedido, porque não tem, como disse, "contraventores prediletos"? Por outro lado, quando criticou Janot, estaria Gilmar Mendes sendo também meramente um jurista ou não estaria ele também manifestando as suas preferências? Teria ou não Gilmar Mendes também os seus "contraventores prediletos"?
A atual situação, na qual fica o Judiciário por vezes acima dos outros dois poderes, tem uma série de perigos. Pode impor de fato uma mudança de comportamento na classe política, que compõe o Executivo e o Legislativo. Desde que realmente não tenha o mesmo tipo de comportamento. Só pode, como quer Sergio Moro, "legitimar-se" diante da "progressiva deslegitimação de um sistema político corrupto" se realmente ficar distante e não se envolver com esse sistema político.
Por enquanto, a Lava-Jato vai na maioria das vezes ratificando o que escreveu Sergio Moro. Parece ser uma ação contra determinado modo de se fazer política, contra a forma como a política se financia e contra a forma como se relacionam políticos e seus financiadores. E não algo destinado a apenas perseguir determinados partidos ou determinadas estruturas de poder.
Mas será assim até o fim? Será assim em todas as instâncias da Justiça? Já dizia o Homem Aranha: "Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades"...